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discurso de 13 de julho de 1821
Chegados a Lisboa, em dezembro de 1820, cerca de cem deputados formaram a primeira assembleia constituinte portuguesa em janeiro de 1821.
Entre eles, Bento Pereira do Carmo, filho de Feliciano Pereira, moleiro de profissão, e de Maria da Conceição. Citando Carla de Campo Bugalho, do livro Lisboa 1821, a Cidade e os Políticos, «do seu percurso académico, sabe-se que Pereira do Carmo alcançou o Bacharelato em Leis pela Universidade de Coimbra, concluído no ano de 1800.
Sendo grande proprietário, Bento do Carmo, administrou os seus bens com a mesma maestria com que exerceu a advocacia na sua terra natal, Alenquer. Isto não o impediu de abraçar a carreira da Magistratura e, enquanto tal, foi nomeado Juiz de Fora, cargo que exerceu em Ançã a partir de 15 de junho de 1806. Durante o seu exercício, não só conseguiu o apoio da Câmara de Ançã ao bonapartismo, como levou a Câmara do Porto, em representação daquela, a defesa para Portugal da autorga de uma Constituição próxima da de Varsóvia. […] Pertencia ao grupo defensor da absoluta Liberdade de Imprensa e contra a censura prévia, sujeitando-se os autores e editores infratores às penas estabelecidas por lei, que por sinal segundo a sua votação nominal seriam bem duras, a saber, 100$000 réis nos abusos contra particulares e, a prisão perpétua, acrescida de pena pecuniária de 1 conto de réis, para os abusos da Liberdade de Imprensa contra o Estado, posicionando-se neste assunto, em relação aos demais, de forma radical! No seguimento desta posição, demonstrou a necessidade do estabelecimento do juízo de jurados para julgar os abusos da Liberdade de Imprensa, como forma de protecção das liberdades e direitos do cidadão, atribuindo aos membros do Tribunal de protecção da Liberdade de Imprensa o ordenado de 400$000 réis. Privilegiou ainda a inviolabilidade da correspondência».

~ Discurso de Bento Pereira do Carmo, de 13 de julho de 1821
Eis aqui a nevrologia do preâmbulo, que entra hoje pela segunda vez em discussão. «Grandes males precipitaram a nação no abismo, de que a salvou a heróica virtude de seus filhos. A origem destes males foi o desprezo dos direitos de cidadão e o esquecimento das leis fundamentais da monarquia. O remédio para que senão renovem é a Constituição política que vai discutir-se e que assenta nessas antigas leis fundamentais, ampliadas com oportunas providências. O fim, portanto, da Constituição é assegurar os direitos de cada um e o bem geral de todos os cidadãos portugueses».
Quando pela primeira vez se discutiu este preâmbulo, foram muitos e muito variados os pareceres dos meus ilustres colegas; mas para me não fazer cargo de tudo o que então ouvi, apontarei somente as objecções que me pareceram mais arrazoadas; e são as seguintes: 1.ª que eram duvidosas as Cortes de Lamego, que estipularam o nosso pacto social; e que não parecia airoso que esta assembleia sancionasse como certo um facto incerto da maior transcendência; 2.ª que conquanto existissem, não era pelo estabelecimento das leis aí ordenadas que poderíamos acabar a grande obra da nossa regeneração politica; porque nelas se não falava de Cortes, nem as Cortes de então gozavam do poder que cumpria para o grande fim da felicidade pública; 3.ª que havendo-se assinalado como causa das desgraças que oprimiam e oprimem os portugueses o desprezo dos direitos do cidadão, era escusado falar no esquecimento das leis fundamentais da monarquia.
Vou responder a cada uma destas dúvidas. E pelo que toca à primeira, direi que não é próprio de uma assembleia constituinte entrar nas miadas e cansadas indagações sobre a existência das Cortes de Lamego. Deixemos a tarefa aos eruditos nacionais e estrangeiros que têm debatido este ponto de nossa história política: aos legisladores só cumpre saber que nas Cortes de 1679 e 1697 se dispensaram e derrogaram alguns capítulos das de Lamego; e que a nação reconheceu por esse mesmo facto a existência e validade dos, que não foram dispensados nem derrogados. Não é, portanto, esta augusta assembleia a que sanciona o pacto fundamental estipulado em Lamego, foram sim as Cortes de 1679 e 1697.
Em quanto à segunda, convenho em que as nossas leis fundamentais não falam em Cortes; mas devo observar que o nosso direito público não foi fundido de um só jacto, nem derivado de uma só fonte. Do direito consuetudinário nos vieram estas grandes assembleias da nação chamadas Cortes; e se acreditarmos um ilustre autor português, já estas assembleias eram conhecidas dos antigos lusitanos, antes da invasão. dos povos do norte; a quem outro as atribui, fiado – no testemunho de Tácito, que diz – de minoribus rebus principes consultant; de majoribus omites. 0 certo é que as Cortes foram reconhecidas sempre pelos senhores reis destes reinos, que muitas vezes as convocaram, chegando a fixar certos períodos para a sua convocação. Acrescento mais, que até foram reconhecidas por aquele mesmo monarca, em cujo reinado morreram; falo do Sr. D. João V, que nos primeiros anos do seu governo continuou a exigir tributos, esperançando os povos de que chamaria as Cortes, logo que a urgência das circunstancias o permitisse; porque não era da sua real intenção violar nossos usos e costumes. Do que levo dito tenho direito a tirar a seguinte conclusão: – As Cortes sempre foram olhadas pela nação e pelos senhores reis deste reino conto formando parte das leis fundamentais da monarquia.
Qual foi porém a autoridade das Cortes nos tempos passados? Se consultarmos os nossos publicistas, as Cortes eram nada. Se consultarmos os monumentos e a história, as Cortes exerceram muitas vezes a soberania, como representantes da nação, em que ela reside.
Por cinco vezes no espaço de 525 anos as Cortes nomearam os senhores reis deste reino e quase sempre excluindo pessoas que se diziam com direitos à coroa mais ou menos fundados. Elegeram o nosso primeiro rei, o Sr. D. Afonso Henriques; o conde de Bolonha, Afonso III, excluindo seu irmão Sancho Il; o Sr. D. João I, excluindo a infanta D. Beatriz, filha do rei D. Fernando, e os filhos de D. Inês de Castro e do rei D. Pedro I; o Sr. D. João IV excluindo os reis de Espanha; e o Sr. D. Pedro II, excluindo o Sr. D. Afonso VI.
0 nosso primeiro rei reconheceu nas Cortes o poder legislativo, quando disse aos deputados da nação juntos em Lamego: - «Constituamus leges per quas terra nostra sit in pace» – «Vultis facere leges de nobilitate et justitia?» Todavia os deputados se esqueceram de levantar barreiras, que lhes pusessem a coberto este poder; e o que resultou de tão fatal esquecimento foi, que 300 anos depois dizia o Sr. D. Afonso V nas suas Ordenações no Livro 3.º Título 78 § 4.º: «El-rei é a lei animada sobre a terra e pode fazer lei e revogá-la quando vir que é compridoira». Em verdade nas Cortes de Coimbra de 1385 algumas restrições se puseram ao poder real, as quais o Sr. rei D. João I aceitou e jurou cumprir; e tais foram «que não faria guerra nem paz sem consultar as Cortes». E quantas desgraças se não teriam poupado à nossa heróica nação, se pontualmente se houvesse observado esta cláusula expressa do nosso pacto social! Viriam porventura a efeito as extravagantes expedições do Sr. D. Afonso V e a sobre todas fatal expedição, que enterrou nos campos de Alcácer Quibir a glória e a fortuna da gente portuguesa?
Pelo nosso direito público as Cortes da nação eram as competentes para concederem os pedidos e contribuições necessárias às despesas públicas; e ao menos nesta parte há sido mais dificultoso aos advogados do poder, arbitrário torcer o sentido e as actas das Cortes passadas; porque os factos têm uma fisionomia mais pronunciada e muito menos equívoca. Esqueceu-se este princípio da nossa lei fundamental; e a nação ficou abismada numa dívida enorme, que sem dúvida custará grandes sacrifícios à geração presente. A perda desta prerrogativa foi a que mais custou aos povos, que sempre protestaram e patentearam a sua desaprovação por todos os meios que se lhes ofereceram. De muitos exemplos que poderia apontar estremarei um só por ser porventura, muito pouco sabido. Um dos Filipes tentou aumentar o cabeção das sisas a despeito das solenes promessas feitas em Tomar por Filipe II; e uma das câmaras deste reino (a da vila de Alenquer), a quem fez a proposta, respondeu: «que sonegar sizas não era pecado, porque sem consentimento das Cortes foram estendidas além do prazo, porque as Cortes as concederam; e que se não convinham na legalidade das que estavam pagando, como era possível convir no seu aumento?» Rematavam esta resposta singular com uma sentença, que muito folgaria ver gravada com letras de ouro nos pórticos dos palácios de todos os reis «Não há rei rico de vassalos pobres, nem amado de vassalos oprimidos.
Concluo por derradeiro, que o nosso direito público admite e reconhece a soberania da nação; admite e reconhece que esta soberania foi exercida pelas Cortes; admite e reconhece que só às Cortes cabia prover às despesas públicas por via de impostos e pedidos.
Até aqui o nosso direito público, agora os factos históricos mostram que mal que se desprezam estes princípios, obscurecidos pela superstição, fanatismo e arbitrariedade, o espírito público esmoreceu e a nação se despenhou num abismo de misérias. Logo, é exacta a ideia do preâmbulo, quando diz que somente pelo restabelecimento destas leis é que pode renascer a antiga prosperidade, mormente sendo ampliadas com oportunas providências. É necessário dizê-lo francamente e repeti-lo muitas vezes a nossos constituintes.
«0 projecto que vamos discutir está esboçado em nossa antiga Constituição»; ou por outras palavras: a nossa antiga Constituição, apropriada às luzes do século em que vivemos, forma o projecto de que nos ocupamos agora. Os seus redactores, instruídos pela história do passado, esmeram-se todavia em dividir os poderes, segundo a sua natureza e marcar balizas, que nem o tempo, nem as paixões pudessem apagar.
Por três vezes tem a nação portuguesa despertado do letargo de alguns centos de anos; nas duas primeiras muito lucrou a causa da glória e muito pouco a da liberdade. Na última, em tudo única, importa segurar por tal maneira o edifício social, que a geração presente colha alguma vantagem de seus arriscados esforços e as gerações vindouras não maldigam a nossa memória, bem como nós maldizemos, nesta parte, a memória de nossos maiores.
Para desatarmos, a terceira dúvida, que se opôs ao preâmbulo, cumpre que nos demoremos um pouco sobre a condição civil da gente portuguesa nos primeiros séculos da monarquia. Quando a nação pôs a coroa na cabeça do senhor D. Afonso Henriques, começava na Europa a desmoronar-se o sistema feudal, que era um encadeamento sucessivo de vassalagem e soberania, subindo por todos os postos da sociedade, desde o vilão até ao primeiro imperante. Causas particulares fizeram com que este sistema não fosse tão pesado entre nós, como em outros países, onde os vilões eram escravos; porque entre nós havia a necessidade política de lhes dar uma condição mais honrosa, do que aos mouros, considerados como o último anel da cadeia social. 0 cristianismo fazia ingénuos os vilões, isto é, fazia-os homens livres capazes de melhorar a sua condição, entretanto que o escravo mouro só podia aspirar à alforria. Outra circunstância concorreu para melhorar a sorte do povo português, e foi o plano que seguiram os nossos primeiros reis de convidar colonos estrangeiros para substituir a povoação mourisca. Concorreu ainda terceira circunstância: os cavaleiros do Templo, do Hospital e do Santo Sepulcro, comunicando o Oriente com o nosso reino, deram uma direcção mais liberal à opinião pública, fazendo conhecer entre nós a Constituição que Godofredo de Bulhões dera a Jerusalém, debaixo do nome de Assises, e que foi um modelo para as nações mais civilizadas daqueles tempos.
À medida que o sistema feudal se relaxava entre nós, parece que se lhe devia substituir uma nova organização social, que fixasse e definisse os direitos do cidadão, de uma maneira clara e precisa; mas não foi assim: estes melhoramentos apareceram destacados, segundo o bom prazer dos reis, que de tempos a tempos se lembravam de tornar melhor a condição civil de seus súbditos, com alguma providência parcial. Assim vemos, por exemplo, que o Sr. D. Afonso II promulgou uma lei, que vem no Livro 4.º Título 25 § 1.º do Código Afonsino, em que ordenava: «que qualquer homem que for livre filhe qualquer senhor que quiser: isto (acrescenta ele) estabelecemos em favor da liberdade por tal que o homem livre livremente possa fazer de si o que lhe aprouver». Assim vemos, que o Sr. D. Manuel prescreveu no Livro 2, Título 46 de suas Ordenações a obrigação de morarem os colonos em certos casais; por considerar este ónus como uma servidão adstritiva; mas não deixou de legitimar outras obrigações feudais, que passaram na sua generalidade para as Ordenações Filipinas do Livro 4, Título 42.
Declarar e fixar os direitos do cidadão não devia ser obra dos reis, mas cláusulas expressas do pacto social. Entretanto em Lamego só se fizeram algumas leis acerca da nobreza; e nas Cortes de Coimbra de 1385 se contentaram os povos de exigir que ninguém fosse obrigado a casar contra sua vontade, como por muitas vezes os obrigaram o Sr. D. Fernando e a rainha D. Leonor. Verdade é, que os povos vendo-se vendidos como rebanhos de ovelhas e doados a donatários com suas jurisdições de mero e misto império, padroados e direitos de padroado, frutos e proveitos, rendas e outros direitos, que rigorosa e excessivamente se lhes exigiam, representaram em Cortes ao Sr. D. João I na linguagem enérgica e singela daquele, tempo: - «que Vossa Mercê fizesse isentos e os tirasse da sujeição de não servir, nem obedecer a outrem, salvo a Deus e a Vossa Mercê. E porque senhor assim como nós somos teudos de socorrer a vossos mesteres e necessidades; assim sedes vós obrigado a nos amparar e nos defender, nós e nossos haveres, a manter a vossa terra em direito, e em justiça». – Contudo o tempo era passado, em que os povos podiam obter condições mais vantajosas: o Sr. D. João I estava já firme e seguro em seu trono no ano de 1430. Por duas principais razões não entraram os direitos de cidadão nas leis fundamentais da monarquia: 1.ª pela barbaridade em que Portugal jazia mergulhado com toda a Europa, quando se estipulou e adicionou o nosso pacto social; 2.ª pela defeituosa organização de nossas velhas Cortes, em que os dois braços, clero e nobreza, impediam acintosamente a emancipação do 3.º estado, que reputavam património seu.
Do que fica dito podemos apurar as seguintes verdades: 1.ª que a condição civil do povo português não foi tão apertada pelo sistema feudal, como a condição civil dos outros povos da Europa: 2.ª que não se substituindo ao sistema feudal uma nova organização social, ficou pendendo do bom prazer dos reis o melhoramento da condição civil do povo português: 3.ª que estes melhoramentos destacados e, incompletos não podiam formar um código, onde bem e verdadeiramente se definissem os direitos do cidadão; e finalmente, que os direitos de cidadão não entraram em nossas leis fundamentais, tanto por arbitrariedade dos tempos, como pelo interesse daqueles que desejavam perpetuar essa barbaridade.
Concluo que o desprezo dos direitos de cidadãos; que vai indicado no preâmbulo, como uma das origens de nossos males, não exclui a outra, que é o esquecimento das leis fundamentais da monarquia; porque nestas leis não vinham declarados e definidos aqueles direitos. Fonte: Luís Manuel Prado de Azevedo, Discursos Parlamentares de Oradores Portugueses, vol. I, Porto, Escriptorio da Empreza («Bibliotheca Modelos de Eloquencia, 1»), 1878, págs. 191-200.
dia 13
de julho de 2021
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