dia 3
#há200anos a corte regressava ao Tejo, a 3 de julho; embarcara no Rio de Janeiro a 26 de abril.
Oito semanas antes de zarpar, o rei D. João VI promulgara no Brasil o decreto sobre a Liberdade de Imprensa, a 2 de março: Fazendo-se dignas da Minha Real consideração as reiteradas representações que as pessoas doutas e zelosas do processo da civilisação e das lettras tem feito subir á Minha Soberana Presença, tanto sobre os embaraços, que a prévia censura dos escriptos oppunha á propagação da verdade, como sobre os abusos que uma illimitada liberdade de imprensa podia trazer á religião, á moral, ou publica tranquilidade; Hei por bem ordenar: Que, enquanto pela Constituição Commettida ás Côrtes de Portugal se não acharem regulares as formalidades, que devem preencher os livreiros e editores, fiquem suspensa a prévia censura que pela actual Legislação se exigia para a impressão dos escriptos que se intente publicar: observando-se as seguintes disposições: Todo o impressor será obrigado a remetter ao Director dos Estudos, ou quem suas vezes fizer, dois exemplares das provas que se tirarem de cada folha na imprensa, sem suspensão dos ulteriores trabalhos; afim de que o Director dos Estudos, distribuindo uma dellas a algum dos Censores Regios, e ouvido o seu parecer, deixe proseguir na impressão, não se encontrando nada digno de censura, ou a faça suspender, até que se façam suspender, até que se façam as necessarias correcções, no caso unicamente de se achar, que contém alguma cousa contra a religião, a moral, e bons costumes, contra a Constituição e Pessoa do Soberano, ou contra a publica tranquilidade: ficando elle responsavel ás partes por todas as perdas e danos, que de tal suspensão e demoras provierem, decidindo-se por arbitros tanto a causa principal de injusta censura, como a secundaria das perdas e damnos: e escolhendo o Director dos Estudos os arbitros por parte da Justiça, bem como o julgador, salvas as excepções de pejo ou suspeição, que á parte possam competir, na fórma de direito. Do mesmo modo deverão os livreiros mandar successivamente ao Director dos Estudos, ou quem suas vezes fizer, listas dos livros que tiverem de venda, e que se não achem em precedente lista, remettendo os que pelo mesmo Director lhes forem pedidos para serem examinados; e caso nelles se encontre cousa, que offenda algum dos mencionados pontos, deverá o Director dos Estudos mandar prohibir a ulterior venda, entregando-se na Livraria Publica, a menos que, sendo de importação, seu dono não prefira reexporta-los. O impressor ou livreiro, que faltar em cumprir com o disposto neste Decreto, incorrerá na pena pecuniaria, que não será menos de 100$000, nem mais de 600$000; e além disso na correccinal de custodia, de oito dias ao menos, ou de tres mezes ao mais, nos casos de maior gravidade; confiscados em ambos os casos os livros apprehendidos. E como pelo acto espontaneo da Minha Soberania, com que Hei por bem suspender até a promulgação da Constituição, a censura prévia, que prende e retarda a publicação e circulação dos escriptos, não é bem podia ser Minha Intenção abrir a porta á libertina dissolução no abuso da imprensa; hei por expressamente declarado que se por algum modo, se introduzirem no publico, apezar das cautelas acima ordenadas, ou pela falta da sua observancia, escriptos sediciosos ou subversivos da religião e da moral, fiquem responsaveis ás Justiças destes Meus Reinos, pela natureza e consequencias das doutrinas ou asserções nelles contidas, em primeiro logar seus autores, e quando estes não sejam conhecidos, os editores, e a final os vendedores ou distribuidores, no caso que se lhe prove conhecimento e complicidade na disseminação de taes doutrinas ou asserções.
Graças à Biblioteca Nacional Digital, pode lêr-se em mais uma Relação Circunstanciada, este testemunho:
Era mui incerto o dia em que S. Majestade entraria nesta Cidade, posto que pelas duas Fragatas Russianas entradas em 29 de junho, se soubesse, que a Esquadra Real havia saído a Barra da Cidade do Rio de Janeiro no dia 26 de abril: essa incerteza retardava as disposições, de que algumas eram de natureza de se fazerem quase ao momento da entrada do Mesmo Senhor; quando no dia 3 a Mesa do Senado da Câmara recebeu pelas oito horas da manhã o Aviso da Secretaria d'Estado em que lhe participava, que a Esquadra, que conduzia a S. Majestade assignasse para o seu desembarque; fazendo sair logo um Bando, que ordenou que se armassem as janelas das propriedades, que formavam as ruas por onde S. Majestade devia passar até à Sé; e que a Cidade se iluminasse nas três noites seguintes à sua entrada.
A Nau D. João VI, em que vinha S. Majestade, e a Sua Real Família, entrou felizmente a Barra; e lançou ferro defronte da Junqueira pelas onze horas da manhã, sendo esta pública felicidade anunciada logo à Cidade pelas salvas d'Artilharia do mar, e terra.
Pelas quatro horas da tarde soube o Senado, que S. Majestade não desembarcava; e que o faria no outro dia, vindo ao Terreiro do Paço, para receber o cortejo, que a Cidade lhe preparava; nesta noite do dia 3 a Cidade, a exemplo do Senado, se iluminou voluntariamente; dando a S. Majestade o gosto da grande perspetiva, que faz a Cidade iluminada, vista do mar.
O decreto que permanece acessível hoje no sítio do Planalto também se pôde ler no 26.º volume do Correio Braziliense, de julho de 1821, do jornalista Hipólito José da Costa.
A autora Isabel Lustosa, no livro de 2019 publicado pela Unicamp O Jornalista Que Imaginou o Brasil, contextualiza: «Antes mesmo de D. João VI desembarcar, foram-lhe apresentadas as bases da Constituição para que as jurasse e, logo depois do desembarque, ele teve de comparecer na Assembleia para ratificar o juramento. [O jornalista] Hipólito compara a situação de D. João com a das mesmas Cortes, que tiveram muitos dias para estudar e debater aquelas bases, e indaga: não seria justo, não seria decente que o rei tivesse algum tempo para considerar e ajuizar desse ato que se lhe propõem que jure, que aceite e que se obrigue a executar? Seria o rei, então, parte indiferente nisso a que chamam novo pacto social?
Hipólito considera que a atitude das Cortes para com D. João VI seria uma forma de negação do papel político do rei, que, na prática, anulava o poder real. Com isso, perdia-se todo o sentido da opção dos revolucionários pela monarquia, pois, segundo o jornalista, era até possível compreender a existência de um Estado ou Nação sem rei, mas não via qual fosse a utilidade de um rei sem os atributos essenciais da realeza. Aludindo ao trauma deixado pela Revolução Francesa, Hipólito lembrava que talvez fosse moda falar mal dos reis, mas essa moda vinha custando caro a muitas nações, que podiam ter evitado grandes problemas sem perda maior de direitos, se tivessem conservado certas formalidades para com as pessoas a quem, para interesse público, se deve o maior respeito. O rei era o símbolo máximo do Regime e as atitudes de reverência para com ele, mesmo que não significassem poder de fato, eram úteis para a manutenção da ordem pública. No entanto, completa, qualquer mordomo de um milorde inglês tem mais representação do que se tem dado em Portugal ao rei».